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26/12/2019 14:08

Socorro por Luiz Renato de Souza Pinto

SOCORRO!

Luiz Renato de Souza Pinto

Paulo Lins roubou José Lins do Rego. Machado de Assis roubou o autor de Viagem à roda do meu quarto. Guimarães Rosa roubou Euclydes da Cunha. Hilda Hilst roubou muitos mortos. Todos cumprem pena em liberdade (FREIRE, 2018, p. 51-2).

 

Todo bailarino tem a paciência de um cego. O equilíbrio de um surdo. A resistência de um anjo, guardião dos segredos da astrologia (idem, p. 104). 

 

O ritual do teatro é abrir as cortinas. O do cinema, apagar a luz. O do leitor, virar a página (idem, p. 116).

 

Tem sido difícil um livro escrito de maneira linear se destacar em meio a essa onda de experimentalismo que adquiriu qualidade indiscutível. Hoje, a despeito de visões conservadoras acerca da literatura contemporânea, está cada vez mais raro encontrar obras de qualidade e que prezam por uma visão encadeada com início, meio e fim, enfim, com uma partitura que contemple uma visão sequencial da narrativa. Mas existe.

“A bailarina fantasma”, de Socorro Acioli, lançado inicialmente em 2010 pela Editora Biruta, de São Paulo é dessas obras. Conheço da autora o “cabeça de santo”, que me interessou no momento em que pesquisava elementos que envolvessem a mística de Padre Cícero Romão Batista, livro que também recomendo. Este é diferente. Repare que digo diferente, não melhor.

As epígrafes acima, extraídas de Marcelino Freire, como pode se observar nas referências ao final, servem de ponto de apoio para o que gostaria de comentar por aqui. Marcelino é escritor, agitador e produtor cultural, além de professor de Escrita Criativa e, recentemente, foi convidado pela própria escritora para ministrar disciplina em curso de Escrita em faculdade na cidade de Fortaleza. Isso é outra história.

O projeto gráfico do livro é maravilhoso. Parece programa de concerto, de ópera, digno da história que traz a público e desvenda ficticiamente as diversas “fofocas” sobre a existência de uma bailarina que tem aparecido há décadas para frequentadores do teatro. É incrível como os depoimentos sugeridos repercutem verdades interiores. “Um dos funcionários morava lá, o seu Queiroz. Vivia com o filho dele, o Carlim, mas estava dormindo” (ACIOLI, 2011, p. 55). 

Vejam só vocês, por onde anda o Queiroz; e saber que seu filho é o Carlim (putz!).  A leitura por um breve instante me trouxe a imagem de Ana Miranda, também cearense, sobretudo da leitura de seu romance “Dias e Dias”, quando Feliciana narra a espera da chegada do navio que traz seu amado, o poeta Gonçalves Dias; e relaciona a cor de seus olhos ao verde de determinado poema do amado, e que diria ter sido feito para si. Mas o leitor fica sabendo que a cor de seus olhos é a mesma das águas da baía de São Marcos, que banham a cidade de São Luis. Aqui, 

 

O jornal não contava também que os olhos de Joseph eram preenchidos de um azul infinito, como deveria ser o mar de sua terra. De tanto navegar no caminho até o Brasil, a cor do oceano deve ter ficado impressa naqueles olhos. Olhar de perto era como viajar e perder a noção do tempo.

Os olhos de castanha de Maria Rosa encontraram o mar de Joseph pela primeira vez quase um mês depois de sua chegada (idem, p. 77).

 

Poesia pura, Socorro! Pareço enxergar Anabela, o pai, a falecida mãe e todos os demais personagens ao meu redor. Incrível como ganharam vida essas pessoas feitas de palavras. Marcelino Freire é certeiro quando fala sobre personagens, quem são, de onde vêm, para o que servem:

 

O que eu escrevo é sim música, mas em decomposição.

Não me venham dizer que escrevo histórias. Ou mesmo que escrevo memórias. Monólogos. Não é nada disto. Meus personagens não são travestis, garotos, negros, favelados, caciques, canários, gigolôs, garçons, pterossauros.

Meus personagens são as palavras. Eu costuro as palavras. Em permanente desalinhavo.

É isto (FREIRE, 2018, p. 65).

 

A magia e o lirismo que se escondem por detrás dos cenários desenhados para o livro, para a divisão de três atos em que se desdobra a narrativa, para reproduzir o cortinado de fumaça e gelo seco que se apresentam no proscênio da escrita lembram artifícios simples que subscrevem paratextos imaginários espelhados para além do palco da palavra. Penso no poema de Lucinda Persona intitulado “Boneca de pano”, integrante de seu livro mais recente, e que reproduzo abaixo para sinalizar melhor minha visão do tema:

 

No natal – quando eu tinha sete anos

(em completa coerência

            com as condições do momento)

ganhei uma boneca – inteiramente de pano:

cabeça, pescoço, tronco e membros

Como era leve aquela bruxinha de ralo cabelo

pele de algodão cru e intestino de palha

Olhos, nariz e boca carimbados

na superfície da cara

Gostava de atirá-la para o alto

e vê-la no chão levantar poeira

num fofo ruído – ploft

Maravilha – ela não morria

Era como jogar para o céu

o que eu tinha de mais leve

Até que uma tarde (e foi tão inesperado)

quando a joguei mais alto do que nunca 

ela ficou no telhado

              A viver por conta própria. 

 

Penso no sótão do Teatro José de Alencar como local sagrado para o encontro dos amantes. Como o porão, inóspito ambiente para a defenestração total. Aqui cabem parêntesis para lembrar da hanseníase e do incêndio de que não tratarei agora, deixando para o leitor. A ambientação da narrativa propõe olhares para uma descrição precisa dos soturnos espaços daquela casa de espetáculos. Se há mesmo fantasmas, não se sabe, estive por lá uma única vez e sequer sabia das histórias, pero que hay, hay, creo que si!

 

REFERÊNCIAS

ACIOLI, Socorro. A Bailarina Fantasma. 2. ed. São Paulo: Biruta, 2011.

FREIRE, Marcelino. Bagageiro. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 2018.

PERSONA, Lucinda Nogueira. O passo do instante. Cuiabá: Entrelinhas, 2019.


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