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02/02/2020 20:32

Tragédia urbana: Leonardo Almeida Filho e Luís Henrique Pellanda - por Luiz Renato Souza Pinto

 

Tragédia urbana: Leonardo Almeida Filho e Luís Henrique Pellanda

 

Entre os dois livros, um espaço de dez anos. É “Nessa boca que te beija” que “O macaco ornamental” vive e respira.  Leonardo Almeida Filho, com seus paralelismos sintáticos, enumerações frequentes, polissíndetos à mancheia e intertextos em série configura o que para mim seja um romance de linguagem. Pellanda, por sua vez, faz do conto (neste livro de estreia) uma gaiola aberta sobre a qual animalidades são esculpidas por grades imaginárias que subvertem as máximas darwinianas a quem parece oferecer alguns cachos de banana. O primeiro de 2019, o outro, de 2009.

Em seu primeiro capítulo (Pessoas, peçonhas), o autor traça um itinerário que busca justificar o título da obra, deixando a entender claramente a referência ao universo de Augusto dos Anjos. Confesso a você, caro leitor, que se esse capítulo aparecesse antes de “Os caminhos que se bifurcam”, traria resultado diverso, no mínimo surpreendente. Mas o autor sabe o que está fazendo. “Esse animal sem carne é o mais terrível dos selvagens que nos habita, pois, por bem ou por mal, só nos traz dor” (ALMEIDA, 2019, p. 57).Leonardo é paraibano como Augusto.

As citações ao bairro de Copacabana produzem um efeito de realidade que tornam a narrativa parte de um processo psíquico de reconhecimento de espaço e dimensão temporal para além do registro da escrita. “Ali, pertinho, anos antes, o corpo de Ana C. maculou a Toneleros, lembrou-se e franziu a testa, demonstrando nojo” (idem, p. 105). A mesma Toneleros da Era Vargas. A linguagem atravessa verso e prosa dificultando a compreensão de suposta origem em comum. “A língua perfeita, a linguagem divina do silêncio, Babelical, a conhecemos décor” (idem, p. 195). Babelical é nome de seu livro de poemas também publicado pela Editora Patuá, de São Paulo.

Mas o que me impressionou de fato foi a lembrança da Casa do Estudante no ano de 1978, quando seu protagonista relembra a figura do amigo Paco. Alguém a quem considerava “tímido, invejava a explosão de alegria que ele trazia nas reuniões do diretório acadêmico, nos saraus das letras, nas festas, enfim, silenciosamente queria ser como Paco, ter a alegria, a voz, a virilidade e o carisma do poeta de São Cristóvão” (idem, p. 196). Fico me perguntando se a personagem seria inspirada no poeta Paco Cac, a quem conheci no Rio de Janeiro e soube depois ter morado (e morrido) em Brasília, cidade em que mora Leonardo Almeida Filho.

Ao cientificismo da poética de Augusto, em forma de metástase na escritura de Leonardo, contraponho os contos de Pellanda pelas referências darwinianas como citei anteriormente. Ao ornamento a que o autor sujeita sua visão de mundo correspondem inúmeras situações que não são fruto (a meu ver) de se macaquear a linguagem; o mesmo digo com relação ao romance. O paranaense, em várias passagens, apresenta desdobramentos desse macaquear. “Nunca trocamos uma palavra, mas uma vez chupamos jabuticabas juntos, como dois macaquinhos” (PELLANDA, 2009, p. 29).

Interpreto essa visão ornamental presente na obra como artifícios os mais variados possíveis que fazem da escrita, como do próprio viver no mundo um conjunto de procedimentos que variam entre a estética e a ética. Para compor melhor meu raciocínio, sigo com Pellanda: “ Quando tudo for utensílio, digo, o próprio homem será apenas um enfeite no mundo. Seu último adorno desnecessário. Uma espécie ornamental de macaco” (idem, p. 80). Pareço aqui lembrar-me dos Titãs nos anos oitenta gritando em alto e bom som, ao vivo e em gravações: “homem primata, capitalismo selvagem”.

Homem ou mulher, animais racionais (pero non mucho) seguem espaçados pelos contos de Luís; ele (s), maculando a própria imagem com seus desajustes e impropérios, ao passo que ela (s),

berrando feito uma macaca pitoca, deixando escapar um flato a cada golpe desferido contra o nada ou contra si mesma, até desabar na lama ao nosso redor, reduzia a coisa nenhuma, só mais uma criaturinha de Deus dentre tantas outras, rãs e pererecas e cobras dilaceradas, menina por fim entregue ao seu destino de mulher sem dono, pacificada à força, absolutamente rendida e feliz” (idem, p. 105). 

E as citações que plasmam à visão humana a condição de primata seguem povoando o livro, como em “Me olhando na porta da geladeira. Meu reflexo seminu parecia o de um macaco espantoso” (idem, p. 116), ou ainda “Vai sentir saudade do meu peso? Do sagui que te mordia a nuca?” (idem, p. 126).

Leonardo Almeida Filho e Luís Henrique Pellanda são autores contemporâneos que escrevem e nos fazem pensar, cada qual com seu ritmo e vocabulário, cada qual construindo a sua partitura para que o leitor tenha acesso ao código e ao ritmo de seu ponto de vista. A linguagem à serviço da comunicação e da produção de sentido. “A literatura é uma narrativa musical. A escrita carrega um ritmo, uma pulsação que em momentos de glória coincide com a sua, é aí o grande encontro entre o leitor e o escritor” (DEL FUEGO, 2008, p. 12). Ler é realmente algo que liberta!

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA FILHO, Leonardo. Nessa boca que te beija. São Paulo: Patuá, 2019.

DEL FUEGO, Andréa. Quase caio. São Paulo: Escala Educacional, 2008.

PELLANDA, Luís Henrique. O macaco ornamental. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2009.

 

 

 

 

 

 

 

 


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