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02/06/2020 21:55

LEITURAS DA QUARENTENA - Luiz Renato Pinto

 

Invadimos o território para aliciar aborígenes e transformá-los em força de trabalho. Expulsamos holandeses e, com apoio do “Sermão do bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda”, afastamos o calvinismo do (nascente) terceiro mundo. A França Antártida também foi expulsa. Assistimos ao neopentecostalismo crescer nos últimos cinquenta anos e sua associação a políticos que, tal qual vírus oportunistas, têm provocado intensas alterações no modus vivendi nacional.O silêncio e a desmobilização social têm raízes profundas e amordaçam privilégios travestidos de direitos, encobrem erros cometidos por um grande período de tempo.

A mistura de populismo e social democracia contribui para a construção do caos.Nunca Machado de Assis foi tão necessário. Leiam “Quincas Borba” para podermos compreender como a literatura é importante para nos ensinar alguma coisa. Hoje foram anunciadas mortes no Rio Grande do Sul e no Amazonas. Agora, de norte a sul já temos óbitos. Em sua página “Galpão de sonho”, Mariana Belize disponibiliza alguns poemas para uma apreciação coletiva. Passeio pela página.

Uma primeira coisa que observo é a beleza das imagens, inusitada disputa da atenção do leitor. Gosto do primeiro poema que leio: “história do brasil”; sobretudo pelas iniciais minúsculas. As imagens me são suficientes para ir de Platão a Dante Alighieri em busca de uma reflexão que vá ao encontro da decolonialidade tão presente no contemporâneo.

história do brasil

moramos numa caverna
de velas apagadas

encaramos a escuridão
presente do Destino

O início do mundo
um país engasgado no parto

 

A preposição grifada traz ao poema um indicativo de relações de pertencimento, e a supressão, a meu ver, ampliaria a possibilidade que o leitor tem de enxergar o que estaria embutido. Como exemplo de síntese, apresento um segundo poema, que me agradou extremamente:

Justiça

lavar pano de chão
no teu verso alexandrino

Fazer justiça com os próprios versos é o que capto maliciosamente. Ao buscar na limpeza do que é mais rasteiro, o poema se utiliza da tradição renascentista.No seguinte, destaco a desnecessidade do grifado por acreditar na força dos implícitos.

Poço

Cavo
pouco a pouco
um buraco no quintal
para enfiar dentro dele
a mulher desiludida.

 

Belize apresenta uma versão sintética da história do nosso país, destaca uma visão sistêmica de justiça que não é igualitária, nem se apresenta como viável para todos. Traz o poço que subverte uma série de direitos, fantasmas e traz uma ideia de isolamento diante do cronotopo bakhtiniano:

Espaço

junto a poeira com as mãos
é um enigma que as palavras trazem
esses insetos que o passado roem
e os textos que os livros escondem

 

Até porque, como certo eu-lírico mesmo afirma em sua página

depois que entra
na boca
do algoritmo

todo poema vira
lixo

pérolas aos porcos.

 

Volto à prosa, agora com Maria Elvira. Começo a leitura desobedecendo o mandamento: não ouço Lou Reed, embora minha formação passe pelo rock; confesso que depois de uma cirurgia no ouvido, tenho ouvido pouco do ritmo. A música ocupa espaço menor que a leitura. Encaro a empreitada com um pequeno dilema: ao trabalhar a relação da crítica com a literatura, deparo-me com a ideia de que

 

A teoria segundo a qual a tarefa do crítico é reconstruir o que estava na mente do autor no momento de escrever é apenas uma forma limitada e dúbia de historicismo – dúbia porque quase sempre se esforça por encontrar por trás do texto o que é essencialmente incognoscível e incomprovável (ROSEN, 2004, p. 159). 

 

Minha primeira impressão acerca de “Danny” é a de que se trata de um personagem que apresenta desvio psiquiátrico.Se penso em uma personagem problemática, me parece que os dramas internos poderiam tomar mais tempo do leitor, do que o meio exterior ao corpo,que sobe e desce do apartamento como quem busca preencher lacunas com sua “flanêrie”. A rua, o viaduto, a janela, são elementos que atuam externamente ao personagem, intermediando o seu estar no mundo.

 

Quanto mais os povos avançam na civilização, mais este estado de melancolia das paixões aumenta, porque acontece então uma coisa lamentável: o grande número de exemplos que se oferecem, a enorme quantidade de livros que tratam do homem e dos seus sentimentos proporcionam conhecimento, mas não experiência (GOMES; VECHI, 1992, p. 67).

 

A ligação do interior com o exterior promove a interação da personagem com o meio, espécie de “não eu” filosófico que encaminha o leitor pela hermenêutica literária. O porteiro do prédio, o caminhão de lixo e a figura de Laura. O primeiro media o trânsito do apartamento para a rua,enquanto a última, como quem leva e traz uma visão de mundo que contrasta com a melancolia, sob a forma de cerveja, vinho, ou mesmo de um prato de comida. O caminhão do lixo ocupa as ruas, elemento disjuntivo de equilíbrio que apura a sensação de rotina, dando leveza aos dilemas suscitados.

O caráter hipocondríaco de Danny soa incomum. Talvez em função da exagerada informação acerca dos comprimidos. Ao centrar o foco em elementos exógenos, os períodos pequenos e uma sintaxe mais enxuta, talvez tratassem com maior desembaraço o fenômeno da flanêrie.

Vejo um paralelismo curioso que enlaça o garçom, o enfermeiro e o vendedor – o fato de serem considerados lindos pelo narrador. Lembrando que o último é o primeiro, reencontro que mitiga a lassidão central que faz da melancolia fio condutor da narrativa. Ninguém aprende a morrer com os gatos. Se têm, de fato, nove vidas, e a identificação é parte do elemento narcísico do texto, imagino que Danny não pensa em morrer, não deseja a morte, não pensa em pular da janela do prédio.

A bola no crânio, que antecede a cicatriz torna-se saliente com a raspagem da cabeça, a caixa craniana tomada pela bola. O corpo como caixa de ressonância. O prédio, caixa dentro da cidade. Dentro do apartamento, a televisão, caixa de notícias; já nela como caixote. Pensamento da morte, o caixão. De olho nos resíduos dos gatos: caixa de areia. A caixa de correios. Laura fazendo compras, pagando ao operador de caixa. A caixa de pinturas de Laura. O som saindo das caixinhas. A caixa dos comprimidos.

Percebo o tom solene que Danny encontra na troca de enfermeiros, como fosse a guarda da rainha da Inglaterra. O sucesso da cirurgia, a companhia de Laura no retorno para casa e os brindes com um bom vinho (mesmo antes do recomendado) selam a cumplicidade entre os dois. Ela, pensando em Betina, a cretina e dissimulada mulher casada que se distraí com as outras, com aquiescência do marido; ele, pensando no vendedor que enche seus olhos de vida. Laura sabe o tamanho do mundo que cabe em uma única garrafa. “Danny” é um texto inconcluso que a autora me apresentou, a título de cumplicidade com o processo em construção.

Esta quarentena não deve estar sendo fácil para ninguém, presos, que nos tornamos, de nós mesmos. Imaginem vocês para os personagens que sequer têm vida própria.

 

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.

GOMES, Álvaro Cardoso; VECHI, Carlos Alberto. A estética romântica. Textos doutrinários comentados. São Paulo: Atlas, 1992.

ROSEN, Charles. poetas românticos, críticos e outros loucos. Campinas, SP: Unicamp; Ateliê, 2004.


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