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22/07/2020 11:51

CIDADE-ALDEIA por Luiz Renato Pinto

 

 

 

 

Nativos de olhar afiado, como nas caravelas

(...) os originários massacrados por tratores

(TUPÃ, 2020, p. 48)

O indigenismo literário é fenômeno recente. Até pouco tempo a representação indígena na literatura se reduzia ao estereótipo da preguiça, lassidão, ociosidade. Não que esse rótulo ainda não se aplique, mas cabe apenas aos néscios e mal intencionados. A escrita indígena registra essa como outras incabidas afirmações acerca do comportamento de nossos irmãos mais velhos. “Não nascemos em 1500, nós já estávamos aqui.O Brasil não foi descoberto em 1500, foi invadido. O colonizador, quando invadiu falou ‘terra à vista’, não falou ‘lá tem pessoas’”. (NHANDEWA, 2020, p. 17).

Em “TETÃ TEKOHA”, publicação do projeto Palavra Indígena, encontramos um pouco do substrato dessa discussão. São textos de compromisso étnico, articulação política e resistência cultural que atravessam as noventa e seis páginas ilustradas. A edição da Editora Pólen tem organização de Alexandre da Sila Nhandewa e Tiago Pyn Tãn de Almeida, lideranças universitárias da comunidade indígena da Universidade Estadual de Londrina.São poemas, narrativas autobiográficas, desabafos de natureza variada. O conjunto dá conta da realidade a que foram submetidas as populações indígenas desde a chegada de Cabral.

Quando me lembro da “Carta” de Caminha a El Rei, dizendo que eram poucos, mas que iam surgindo cada vez mais e depois eram muitos, e vai numerando o quantitativo, ao voltar os olhos para a ancestralidade pelas palavras desses jovens, renovo a ambientação pela voz dos descendentes diretos daqueles povos: “Nós voltamos, nós ainda estamos voltando / E cada vez seremos mais e mais / E nós nos tornaremos tantos que você não mais / Conseguirá nos subjugar com o estralar do seu chicote. / (JACINTHO, 2020, p. 7).

Esse ir e vir dentro da cultura se caracteriza pela ocupação de um espaço, do lugar de fala que se torna realidade via mercado editorial. Daniel Munduruku e Aílton Krenak são pontas de lança nesse aspecto, mas mulheres também figuram no cenário das letras, como Eliane Potiguara e Márcia Kambeba. A literatura produzida por indígenas, em especial a poesia, 

permaneceu quase desconhecida para nós; sobre ela formaram-se pouco mais que hipóteses, esboços hesitantes que empobreceram e estereotiparam o objeto de sua consideração, a ponto de proscrever-nos a possibilidade de qualquer estesia mais aguda desse objeto. Investiu-se na unidade, na simplificação, na exterioridade superficial, em vez de pesquisar a rica diversidade dessas culturas com sua poesia, enfrentando-lhe a complexidade e os matizes subjetivos e estéticos. (MATOS, 2012, 440).

  

Luzia Oliva dos Santos defendeu a tese acerca dos matizes da figuração indígena, fazendo o percurso desde o período colonial até a segunda metade do século XX.A pesquisadora teve a preocupação de documentar o itinerário com comentários críticos à seleção das obras, à postura da crítica diante do que se escreveu e reconstituiu, pelos princípios da alteridade um mea culpa acadêmico ao saber da ancestralidade.Claro que dentro dos limites da crítica literária, as considerações de caráter antropológico, bem como elementos distintivos da grande área das ciências sociais, têm participação secundária na exposição dos motivos, nem por isso coadjuvantes.

 A negação dos valores fundamentais, envolvidos nessa relação, causa efeitos incalculáveis no que diz respeito aos estereótipos formados a partir das ações tradicionais que as etnias sempre tiveram como certas e das sanções que recaíram sobre elas como reprováveis. Entre a fronteira extrativista, pastoril ou agrícola e o convívio com as etnias construiu-se uma muralha de preconceitos, tingida de um repertório de alusões aos índios, descritos como bichos mais que como seres humanos, traiçoeiros, preguiçosos, violentos, infantis, dentre outros adjetivos que passaram a ser utilizados diante de qualquer procedimento discrepante do habitual por qualquer nativo (SANTOS, 2008, p. 356). 

Essa noção de pertencimento nunca se perdeu. E na juventude que agora ocupa bancos universitários para devolver à tribo a gratidão pela vida é parte da cosmovisão contemporânea que une floresta e cidade em um reordenamento do mundo físico que habitam. “O NOME QUE CARREGO / Não se trata de por somente o nome, se trata de trazer no nome uma história, se trata de saber de onde veio”. (NHANDEWA, 2020, p. 14).A poesia do coletivo trata do que vemos na mídia, mas também da cultura da resistência, de quem é mestiço, inclusive, habitante de um não lugar: “Nascido de (...) um pai não indígena com ascendência espanhola, fui criado boa parte da vida entre não os indígenas, (...) Mestiço para alguns, não indígena para outros”. (QUEIROZ, 2020, p. 90).

A realidade tem mudado. Já se percebe suas presenças em destacados estabelecimentos de ensino de onde se ouvem denúncias de que “Nosso território sofre / Discriminação fere / Queimada arte / Tiro tira a vida de outra liderança”. / (ZAMBONI, p. 35).E assim se vai construindo a nova realidade que a inserção social propicia. Não que seja fácil, que não haja esforço a fim de combinar o que o título do livro sugere: TETÃ TEKOHA.

 

Na cidade me sinto como um pássaro, engaiolada,

Não posso voar, muito menos correr!

(...)

Agora observo o muito ao redor de minha casa,

Pássaro engaiolado que deveria estar livre

Cuidando dos seus ninhos

A água cristalina, não tem,

Foram destruindo

Sair correndo para o rio não tem como,

Foram destruindo

Observar peixe nadando, também não

(YVOTY, 2020, p. 23).

 Lugar de indígena é onde ele quer que seja, parodiando o discurso de mulheres, de negros, de homossexuais, de quilombolas. Diariamente temos que trabalhar para diminuir as distâncias, acompanhar o desenvolvimento de novas tecnologias e colocá-las a serviço de todos. “Se precisar usar a tecnologia ocidental para recuperar a cultura oral, usarei e não serei mais branco ou menos índio por isso. Serei mais eu”. (ZAMBONI, p. 34).

Bem vindos ao mercado editorial, Alexandro da Silva Nhandewa, Ana Lúcia Ortiz M. Kunha Yvoty, Elon Lucas Jacyntho, Felipe Zamboni, Rodrigo Luís Tupã, Yago Junio dos S. Queiroz, transcritos aqui como também Débora Silva, Jacqueline de Paulo Sabino, Tiago Pyn Tánh de Almeida, Uerique Gabriel Matias e Valéria Lourenço Jacyntho. Livro também é tecnologia, como o são o giz, a caneta, a enxada, o cinzel.

 

REFERÊNCIAS

MATOS, Cláudia Neiva de. Textualidades Índígenas no Brasil. In: Estudos de Literatura e Cultura. 2. ed. FIGUEIREDO, Eurídice (org.). Juiz de Fora: UFJF; Niterói: EdUFF, 2012.

NHANDEWA, Alexandro da Silva. ALMEIDA, Tiago Pyn Tánh de.  TETÃ TEKOHA. São Paulo: Pólen, 2020.

SANTOS, Luzia Aparecida Oliva dos. O percurso da indianidade na literatura brasileira: matrizes da figuração. São José do Rio Preto, SP: UNESP, 2008.

 

 


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